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27 de jun. de 2011

Alexandre O´Neill, o gato e o adeus


Cat on a roof 1978 Fernando Botero
Alexandre O´Neill, o gato e o adeus
* Conto de José Jorge Letria, em "Amados Gatos"


O GATO, vendo o poeta de ombro apoiado na ombreira a observar a feira cabisbaixa em seu redor, acercou-se dele e perguntou-lhe, no murmúrio ronronado que costuma servir de preâmbulo às grandes questões metafísicas:

- Servos ou donos?

O poeta, por achar a pergunta demasiado enigmática, contornou a resposta afagando-lhe o dorso e dizendo:

- Deves estar cheio de fome, o teu mal é fome, e eu não tenho forma de remediar esse problema, porque não sou rato, nem peixe, nem pássaro estonteado pela luz. Eu sou apenas um pobre poeta de ombro na ombreira.

Mas o gato, apurando o gutural e afectuoso ronrom, insistiu:

- Sei bem ao que venho, sim, porque eu nunca me esqueço dos versos que me são dedicados. Eu bem me lembro das tuas palavras, Alexandre: Que fazes por aqui, ó gato? / Que ambiguidade vens explorar? Quem sou eu, meu caro Alexandre, para te deixar sem resposta, logo a ti, meu poeta de Lisboa, de coração amarfanhado pela tenaz da mais irónica ternura?

Foi então que Alexandre se lembrou do gato do poema, dessa coisa ágil e esquiva, soberana e livre, em forma de assim, fugaz como um golpe de vento, rebelde como uma metáfora imprevista.

- Tantas vezes te deixei utilizar esta mão — disse — que cheguei a acreditar que, quando escrevesse um poema sobre ti, serias tu mesmo a escrevê-lo, de forma mediúnica, usando o movimento pausado da minha mão sobre o papel.

O gato, esse mesmo, o do poema, roçou a cabeça pelas pernas do poeta, impregnando-se com o seu cheiro, com o perfume das suas palavras exactas e limpas, e depois aventurou-se num breve monologo de bicho filosofante. Assim:

- É como te digo, Alexandre, tu e eu temos em comum este vício felino de sermos livres, nas palavras, nos gestos, nos silêncios. Um dia, tu partes e eu fico para aqui abandonado a miar à lua, como se perguntasse por ti. Um dia, eu parto e tu ficas sem gato a quem possas dedicar o poema, órfão de gato, nostálgico da sua arqueada liberdade arrastada sobre os telhados como uma confissão de nocturnos cios.

O poeta, emocionado com a enleante sabedoria do gato, esse mesmo, o do poema, só conseguiu perguntar-lhe:

- Afinal, vamos lá a saber, o poeta és tu ou sou eu?

Ao que o gato respondeu:

- Somos os dois, Alexandre, somos os dois, cada um à sua maneira. Tu no que escreves e eu no que não escrevo mas vivo. Temos este destino comum a ligar-nos como uma ponte, como uma centelha de luz, como um arame a juntar as duas extremidades da lua nova.

Alexandre, o poeta, só encontrou uma forma de lhe responder:

- Há miar e miar, há ir e voltar.

Ainda a frase não se deixara concluir e já o gato se empoleirara sobre o parapeito de uma janela, muito perto da ombreira da porta, posto de observação do poeta para ver a feira a ficar cada vez mais cabisbaixa, por falta de esperança para erguer de vez a cabeça em direcção ao sol.

Do gato nunca mais o poeta teve noticias, nem em prosa nem em verso, e quando, num sisudo dia 21 de Abril, o coração do poeta, como um gato triste e cansado, se recusou a levar por diante a faina de estar vivo, houve quem avistasse um velho gatarrão sobre o parapeito da janela do hospital, murmurando com a sapiência do seu estilo ronronado:

- Há miar e miar, e tu, Alexandre, hás-de voltar, porque um gato sem o seu poeta de estimação fica prometido à morte como um pardal à inclemência do relâmpago.

E quando alguém, aproximando-se dele, quis saber "o que fazes por aqui, ó gato?", o bichano, arqueando-se para o derradeiro salto na direcção da lua, respondeu apenas:

- Perguntem ao Alexandre, ao O'Neill, que só ele sabe. Os poetas é que sabem. É dos livros.

***

* José Jorge Letria
Jornalista, e escritor. Nasceu em Caiscais, Portugal em 1951. È antiga e profunda a paixão do autor pelos gatos e pelo seu singular universo de liberdade e soberania. Letria vive com seus nove gatos. Escreveu Amados Gatos que é um conjunto de textos que tem como ponto de partida os gatos de figuras famosas da literatura, das artes e da política, de Richelieu a Lenine, de Hemingway a Anne Frank, pasando por Churchill, Marilym Monroe, Paulo Klee ou Zola, entre outros. Construidos com base em fatos e figuras reais, estes contos reinventam a vida de gatos famosos e de seus ilustres donos, assumindo-se como homenagem a estes felinos que o homem nunca conseguiu domesticar.


Postagens para Alexandre O´Neill 

9 de jun. de 2011

Alexandre O´Neill


Quem é Alexandre O'Neill

Ele também gostava de gatos. Há alguns poemas e crônicas dele, publicadas por aqui.

É da sua autoria o lema publicitário: “Há mar e mar, há ir e voltar” que tratava dos cuidados que as pessoas têm que ter com a praia. É que precisava sobreviver, e só com sua poesia não era possível, portanto trabalhava em marketing.

Foi várias vezes preso pela polícia política, a PIDE (Uma Scotland Yard portuguesa).

Acho que era bem humorado e satírico, pela sua biografia e bibliografia, posso concluir..

Surrealista!


Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill. Nasceu em Lisboa19 de Dezembro de 1924 e morreu em Lisboa21 de Agosto de 1986 com 62 anos.

Descendente de irlandeses, autodidata, O’Neill foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o volume de colagens “A Ampola Miraculosa”, (1949)  constituída por 15 imagens sem qualquer ligação e respectivas legendas, sem que entre imagem e legenda se estabelecesse um nexo lógico, o que torna altamente irônico o subtítulo da obra “Romance”.

As influências surrealistas permanecem visíveis nas obras dele, que além dos livros de poesia incluem prosa, discos de poesia, traduções e antologias. Não conseguindo viver apenas da sua arte, o autor alargou a sua ação à publicidade.

A poesia de Alexandre O'Neill concilia uma atitude de vanguarda (surrealismo e experiências próximas do concretismo) — que se manifesta no caráter lúdico do seu jogo com as palavras, no seu bestiário, que evidencia o lado surreal do real.

Os seus textos caracterizam-se por uma intensa sátira a Portugal e aos portugueses, destruindo a imagem de um proletariado heróico criada pelo neo-realismo, a que contrapõe a vida mesquinha, a dor do quotidiano, vista, no entanto, sem dramatismos, ironicamente, numa alternância entre a constatação do absurdo da vida e o humor como única forma de se lhe opor.

Temas como a solidão, o amor, o sonho, a passagem do tempo ou a morte, conduzem ao medo: “O Poema Pouco Original do Medo”, com a sua figuração simbólica do rato ou à revolta de que o homem só poderá libertar-se através do humor, muitas vezes manifestado numa linguagem que parodia discursos estereotipados, como os discursos oficiais ou publicitários, ou que reflete a própria organização social, pela integração nela operada do calão, da gíria, de lugares-comuns pequeno-burgueses, de onomatopéias ou de neologismos inventados pelo autor. 

Alexandre O'Neill escreveu:

Tempo de Fantasmas (1951),
No Reino da Dinamarca (1958),
Abandono Vigiado (1960),
Poemas com Endereço (1962),
Feira Cabisbaixa (1965),
De Ombro na Ombreira (1969),
Entre a Cortina e a Vidraça (1972),
A Saca de Orelhas (1979),
As Horas Já de Números Vestidas (1981),
Dezenove Poemas (1983) e
O Princípio da Utopia (1986).
Poesias Completas, 1951-1983 (1984).
Tomai Lá do O'Neill (1986)
As Andorinhas não Têm Restaurante (1970)
Uma Coisa em Forma de Assim (1980, volume de crônicas)
Gravou o disco: Alexandre O'Neill Diz Poemas de Sua Autoria.
Em 1966, foi traduzido e publicado na Itália, pela editora Einaudi, um volume da sua poesia, Portogallo Mio Rimorso.
Recebeu, em 1982, o Prémio da Associação de Críticos Literários.

7 de jun. de 2011

Alexandre O´Neill: Não se pode morar nos olhos de um gato

Minha gata Cindi
Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato

Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato

Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato

Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Alexande O'Neill

6 de jun. de 2011

Alexande O´Neill: Gato

Gatos: William Henry Trood
Que fazes aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,

ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que Deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo

ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

Alexande O´Neill