Uma da manhã. Quase que não vinha mais o ônibus. Para beber umas cervejas com os amigos, não podia ir dirigindo. Bateu vontade de escrever sobre as impressões desta sexta, à pé, quase fria, em Sampa. Então, cá está minha cabeça fervilhando das visões da noite. Depois de algumas risadas e várias cervejas, é hora de ir e enfrentar a noite da chamada civilização. Tanta gente perambulando pelas calçadas sujas, pelas ruas, pelos bares. Um cara de patins velozmente cruza em sentido contrário ao meu na avenida Paulista e logo atrás, um cachorro sozinho e apressado passa decidido a encontrar um dono, e dezenas de pessoas nos pontos de ônibus, tantas outras andando sozinhas a passos miúdos, lendo no chão as frases de seu pensamento. Os bares e as luzes intensamente pulsantes ardem nos olhos, gente dormindo nos ônibus, vários outros tagarelando frases misturadas a risos, cada qual com seu pulsar.
A cidade parece em convulsão, o tempo todo e a qualquer hora. Não há mais hora. Engraçado que todos usam uma mochila nas costas, nem sei o que tanto é preciso levar nas costas. Algumas das mochilas são verdadeiras onças pintadas, sabe-se lá se alguém pára para pensar na extinção delas, a gente até sabe que é imitação, mas imitação dos ricos que as usam de verdade. E essa mochila sabemos que é feita pelos bolivianos que aos milhares vêm trabalhar aqui, para os coreanos, nas oficinas de costura, e no mais tudo é MADE IN CHINA.
A calçada cinza clarinha segue, dia-a-dia, artisticamente esculturada pelos chicletes, mastigados e cuspidos, formando manchas escuras, esmagados e encrostados pelos milhões de sapatos que transitam ao longo dos tempos. Nesta hora ouvi dizer que na China o transeunte mastigador de chicletes é multado por cuspir a borracha no chão. Sei lá, nem sei como essa proibição (e outras) ainda não chegou por aqui. Cigarro só na rua. Bitucas também. Adeus aos cinzeiros! Salvem-se os bueiros! Cidade de proibições e libertinagens. Travestis siliconados femininamente, falam grosso e tremem seus pomos-de-adão ao engolir saliva, esperando parceiros sexuais que pagarão o feijão de cada dia.
Todas as tribos estão na noite, opções sexuais, emos, nerds, prostitutas, pearcing e tatuagens, orelhas abertas com argolas cada vez maiores, (as argolas para os beiços ainda não são moda), bando todo vestido de preto, intelectuais noturnos, enxames de ciclistas paramentados com luzinhas piscantes, grafiteiros debaixo dos viadutos disputando espaço com moradores de rua. Mas na verdade o que eu queria mesmo dizer, é que estas visões todas, (hajam neurônios para decodificar tanta informação) são uma miscelânea de comportamentos incontáveis, impossíveis de digerir todos de uma vez. Nem que tivesse uma câmera escondida conseguiria registrar as horas intermináveis de situações e movimentos, em frações de segundos que tornam-se séculos.
O menino vasculha sacos de lixo para recolher latinhas de alumínio consumidas por outros meninos e por mim. A cidade berra suas desigualdades na minha cara com tanta força que dá para sentir seu hálito. Comportamentos agressivos e debochados, a sexualidade extremamente aflorada, não posso avaliar nem julgar, minha geração é anterior e sempre temos uma crítica a fazer da atual, mas os comportamentos são reflexos da sociedade, da política, da qualidade de vida, da visão de mundo. E apesar de termos progredido socialmente, com o governo popular de Lula que propiciou renda, e apesar de termos dominado a economia, apesar (até) de termos ganho sediar os jogos olímpicos em 2016, não avançamos na destruição do capital. Conseguiu-se que alguns tenham um pouquinho a mais, mas ele - o capital - continua intacto. E sigo tendo dúvidas (elas se renovam) de qual é mesmo o caminho para esse mundo melhor, ao qual dediquei o melhor de mim.
Enquanto isto, a cidade fervilha lá fora em incontáveis acontecimentos sonoros, palatares, visuais e odoríficos, dentro de uma noite veloz... e eu aqui, fervilho de sono inquieto. Preciso dormir, são 2h05. (Ada,3/10/2009)
PS.: O título, Dentro da Noite Veloz, tomei emprestado de Ferreira Gullar...
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