Houvesse tempestade de verão, estava lá, com as fuças coladas à vidraça para acompanhar a enxurrada. Ainda hoje é assim. Uma ansiedade no ver, ouvir e sentir. Quando o cheiro de terra evapora invadindo as narinas [mesmo quando não há terra, sente-se o cheiro dela] tudo no mundo se agita e se prepara para a fuga. Esse primeiro cheiro passa rápido, apenas prenúncio das águas.
Quando os pingos começam espaçados, o povo na rua passa correndo, buscando pelo vão entre eles, chegar menos molhado. Não sei porque se deduz que correndo da chuva ela nos molhará menos. A raridade dos pingos é breve, isso se a tempestade for daquelas que honram o nome. Eles se intensificam em tal monta, e tão rapidamente que o cheiro, sons e cores mudam. Eles deixam de ser pingos e, em grande quantidade, mudam de qualidade na dialética da natureza. Viram outra coisa, se tingem de cinza, refletem o asfalto e o negrume do céu. Viram obra de arte.
Simetricamente lançados feito flechas, respingam em círculos milimétricos perfeitamente calculados para depois escorrer em linhas no preto prata da rua molhada. Os raios iluminam medos de que o céu caia junto com o aguaceiro. São flashes de uma máquina fotográfica registrando a caras assustadas.
É líquido e certo correr a dobrar barquinhos. A folha de papel arrancada às pressas do caderno de escola, sempre aberto nesses momentos da infância, é lançado rio abaixo que tem como leito a sarjeta. Torcida para que ele resista e, quem sabe, chegue ao fim da rua são e salvo levando sua tripulação apavorada [inclusive eu a comandante do navio]. Lá vai uma bronca da mãe para não ficar resfriada. Nunca se fica resfriado numa chuva de verão!
O vapor da boca prepara imediatamente a vidraça para que um nome seja escrito: nas primeiras experiências escreve-se o próprio nome. Mais tarde, escreve-se um beijo [estudo do formato da boca] e nas próximas tempestades desenha-se corações. Em breve serão outros nomes, suspiros e outros sonhos. Uma verdadeira literatura de janela surge com o passar dos tempos. É só baforar novamente que as palavras se revelam.
E quando o ar exalar seu ápice de frescor é que tudo se ameniza. O ciclo se completa para começar de novo no próximo verão e se repetir infinitamente, nas vidraças, na escrita e na vida. Há que se aproveitar bem de uma tempestade... (Ada, 4/11/2009)
"Embora lave o medo
que há do fim
a chuva apaga o fogo
que há em mim.
Ouço a voz de quem
me quer tão bem
E fico a ver se a chuva
a ouvirá também..."
(Ornatos Violeta)
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