1 de fev. de 2013

O Gato de Jacopo Bassano

O Gato de Jacopo Bassano

* Conto de José Jorge Letria, em "Amados Gatos"


CRISTO, sempre atento aos vícios e outros excessos terrenos, surpreendeu uma noite o pintor Jacopo Bassano enquanto retocava uma tela, e disse-lhe com uma voz cuja doçura não excluía o leve ferrete da reprovação:

- Apesar da minha bíblica humildade, devo dizer-te que me incomoda o facto de, nos teus quadros, rivalizar com minha presença divina a imagem do teu gato.

Não esperando tal reparo e muito menos tão transcendente e inusitada visita, Jacopo Bassano tentou encontrar as palavras certas para responder aquele que tanto venerava e a quem já várias vezes encomendara a sua alma pecadora. Ele sabia que só a protecção divina o tornara quase tão importante e requisitado como Tintoretto e Veronese, grandes entre os maiores pintores do seu tempo e, como ele, amantes dos domésticos felinos.

Menegheto, o companheiro da sua solidão habitada por tintas e imagens sacras, já partilhava o conforto da sua morada ia para dezasseis anos. Quantos anos viveria ainda? Acarinhado e bem alimentado, sem ter que caçar ratos junto das águas fétidas dos canais, poderia durar ainda mais dois ou três anos.

Jacopo Bassano hesitara, inicialmente, antes de o transformar em discreta personagem das suas telas meticulosamente imaginadas e pintadas. Depois pensara: "Que mal pode haver na presença do meu gato nos quadros que pinto, se essa presença é discreta e não ofusca nenhuma outra?". Foi assim que Menegheto passou a ter lugar cativo na sua obra, representando uma liberdade e uma soberania que nunca caracterizaram, por exemplo, o cão que também pintou dormindo tranquilo debaixo de uma mesa da sua casa.

Agora, a presença física do filho de Deus deixava-o estupefacto e, sobretudo, seriamente embaraçado.

- Senhor, nunca me atrevi a imaginar que a presença do meu gato nas telas, jamais as de terra sacro, pudesse incomodar-vos - disse o pintor.

- Mas a verdade é que incomoda - respondeu Cristo, sempre num tom complacente e suave -, pois não devem misturar-se na tua pintura, que tem um inegável sopro divino, o mundo celeste e o mundo terreno, com a sua pequenez e irremediável finitude.

Sem que disso te dês conta, introduzindo com tanta frequência o teu gato nos quadros que pintas e nos seus enredos, acabas por te transformar mais num pintor de felinos do que num pintor de anjos e de outras figuras imortais e intemporais.

- Mas que hei-de eu fazer, Senhor?

- Porque não guardas a presença, por certo graciosa e bem intencionada, do teu gato para um quadro em que representes o eternamente generoso e humilde São Francisco de Assis, já que esse tinha a virtude rara de conseguir falar com os bichos, com as árvores e com as águas dos rios? Por certo havias de cair nas suas franciscanas graças.

- Assim farei, Senhor, logo que para tal me surjam inspiração e ensejo.

Ainda Jacopo Bassano não concluirá a sua lacónica resposta, já Cristo se volatilizara, deixando-o a bravos com um dilema: havia de manter Menegheto nos seus quadros ou havia de o reduzir a insignificância de uma discreta presença física nos seus aposentos, afastando-o, desse modo, do patamar da posteridade?

Nesse instante, Menegheto roçou-se pelas pernas do dono e disse-lhe:

- Meu amo, há mais de um ano que não pintas uma tela em que eu esteja presente. Será que a minha velhice me aniquilou a teus olhos como modelo?

Bassano benzeu-se e ajoelhou-se para rezar, pois estivera sujeito a duas emoções demasiado intensas num só dia. Primeiro, recebera a visita do filho de Deus, e depois ouvira, pela primeira vez, o seu amado gato Menegheto a dirigir-lhe a palavra como se de um ser humano se tratasse. Estaria, porventura, a enlouquecer?

Num fugaz exercício de memória recordou todas as vezes que havia retratado Menegheto e constatou que sempre o fizera exibindo a sua estranheza inquieta e a sua rebeldia em relação ao mundo circundante. Mas essa rebeldia e essa estranheza seriam as do seu gato ou aquelas que a si mesmo teimava em atribuir, reagindo, desse modo, ao incómodo causado por certas encomendas artísticas que não podia recusar-se a concretizar, sendo como era profissional estimado e respeitado por nobres e por plebeus?

Passados seis meses, Menegheto adoeceu gravemente e morreu ao fim de poucos dias. Jacopo Bassano chorou a sua morte como se chorasse a de uma mulher amada. Quando o enterrou nas traseiras da sua casa, num dia chuvoso e de ar abafado, rezou por ele e encomendou a sua alma a Cristo, porque se recusava a duvidar de que Menegheto tivesse uma alma como a sua. E fora essa alma de gato, fugidia e insubmissa, que o ajudara a ser o pintor em que se tornara e que estava agora, também, no termo da vida, com Cristo e os anjos a velarem por ele." José Jorge Letria


A Última Ceia - Data de cerca de 1546 - óleo sobre tela Dimensões 168 × 270 cm (66,1 x 106,3 in) de Jacopo Bassano

A Ceia em Emaús , óleo sobre tela de Jacopo Bassano (Jacopo dal Ponte), c. 1538, Kimbell Art Museum, Fort Worth, Texas 1538.







Jacopo Bassano (1510 - 1592), 

também conhecido como Jacopo dal Ponte, 
foi um pintor italiano que nasceu e morreu 
em Bassano del Grappa perto de Veneza 
de que ele adotou o nome. 
Seu gato se chamava Menegheto 
e aparecia discretamente em suas telas, 
às vezes, junto com outros animais.

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* José Jorge Letria
Jornalista, e escritor. Nasceu em Caiscais, Portugal em 1951. È antiga e profunda a paixão do autor pelos gatos e pelo seu singular universo de liberdade e soberania. Letria vive com seus nove gatos. Escreveu Amados Gatos que é um conjunto de textos que tem como ponto de partida os gatos de figuras famosas da literatura, das artes e da política, de Richelieu a Lenine, de Hemingway a Anne Frank, pasando por Churchill, Marilym Monroe, Paulo Klee ou Zola, entre outros. Construidos com base em fatos e figuras reais, estes contos reinventam a vida de gatos famosos e de seus ilustres donos, assumindo-se como homenagem a estes felinos que o homem nunca conseguiu domesticar. Amados Gatos

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