26 de mar. de 2010

Na semana que acaba fui assim

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,



Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.


Não sei quantas almas tenho
(Fernando Pessoa)

20 de mar. de 2010

Um sábado de cão!

Hoje levei meu cãozinho Caillou para um banho no “pet shop”. Sempre lhe dou eu mesma e em casa o seu banho semanal. Mas hoje, sabadão em que o outono deveria estrear, quebrei a rotina. Estava tão cansada da semana de trabalho que precisava andar na rua, tomar sol, respirar e dar o banho do meu cão a outra pessoa.
Saímos, eu e Caillou, em caminhada de uns vinte minutos até o pet nas bandas do Jabaquara. Dez horas da matina, voltando prá casa, enxergo um cão vira lata à la pastor alemão, deitado e ofegante no mato que ladeia a calçada. Sabem como é calçada na periferia? Cheia de lixo e mato. Pensei, foi atropelado na avenida e deitou-se ali se escondendo do malfeitor.

A intenção de relaxar neste sábado ensolarado caiu por terra.
Fui para casa levar Caillou e voltei com ração e água. Ele estava faminto, sedento e muito machucado. Mas os machucados demonstravam que estava assim há dias. Tinha berne. Prostrado ao sol que impunemente queimava-nos. Outono disse que viria hoje lá pelas quatorze horas, mas o verão não aceitou não, continuou reinando. O que farei. Terei que fazer algo. Minha consciência não permite de jeito nenhum um “deixa prá lá”, ou “tá cheio de casos assim pelo mundo”, ou “a guerra acontece na Palestina há séculos e morre tanta gente”, ou “o Haiti e o Chile estão debaixo de escombros e cadáveres”, ou existe uma tal taxa Selic e as “mulheres de branco tentam desestabilizar as coisas em Cuba”, ou as focas do Canadá e os Golfinhos do Japão e da Dinamarca, os touros na Espanha estão sendo assassinados em nome de tradições, enfim, tudo isso acontecendo eu sei, mas um animal está indefeso, doente, e precisando de ajuda. E eu vi. Passei ao lado dele. Não negarei ajuda.
Liguei imediatamente para alguns contatos de protetores de animais e depois que consegui lá vou eu ajudar na empreitada. Quero fazer um aparte aqui e dizer que existe um modo de vida desconhecido e ignorado da sociedade: o modo de vida dos protetores de animais. Eles são pessoas incríveis e dão seu salário e seu tempo aos pobres animais abandonados que sofrem humilhações, abandono e maus tratos dos humanos sem qualquer possibilidade de defesa ou escolha. À revelia de quase-zero políticas públicas da Prefeitura ou Estado, os cães e outras espécies são comercializados e se proliferam pelas ruas sem muitas chances de sobrevivência. Nas grandes cidades, assim como no mundo, vemos cenas entristecedoras para aqueles de sentimentos pouco mais à flor da pele. Não dá para descrever as cenas deste resgate e de nenhum outro. Acho que um cinegrafista faria cenas incríveis se acompanhasse o dia a dia destes protetores anônimos e voluntários. São todos uma saga, de um empenho indescritível, de um esforço recompensador. 

Este foi mais um resgate difícil em que o cão machucado resiste, por medo. Ele roeu a guia e em cinco minutos fugiu, e lá vamos nós persegui-lo pelas ruas vizinhas. Mesmo cambaleante ele teve forças para andar e se esconder. Tinha muito medo. Conseguimos concluir a tarefa eram cinco e vinte da tarde! O tempo urge, as clinicas vão fechar para o fim de semana! Mas deu tempo! Só quem faz, ou fez isso um dia, sabe do que estou falando.
O cão é lindo! Um jovem descendente de pastor alemão, cheio de cortes profundos e bicheiras devorando-o vivo. Não sobreviveria mais que alguns dias nas ruas. Tive sorte de estar na calçada em que ele agonizava. Acho que contando com os meus princípios de vida e de defesa da vida, ele ficou alí à minha espera. Posso parecer "bicho esquisito" mesmo, andando na contramão, defendendo ideiais comunistas... Mas agora o cãozinho, sem eira nem beira, está salvo e em recuperação numa clínica veterinária, sedado e alimentado. Graças à Silvana que assumiu todo o resgate e tratamento.
A chuva cai lá fora.Fico pensando em todos os que ainda estão ao relento, sofrendo. Animais Humanos e não humanos. Continuo lutando pelo fim destes maus tempos. "Downturn".
Alguns vídeos durante atendimento veterinário:
video 1
vídeo 2
vídeo 3
Fotos no photobucket aqui
Agradecimentos especiais à Silvana Mitne, Cris e Douglas, "os protetores" incansáveis que salvam tantos cães desta cidade. E às amigas do bairro, Elaine e Marta que sempre estão presentes nestas situações difíceis. Sem eles isso tudo teria sido impossível. A galera do bem..

13 de mar. de 2010

Sobre os Sonhos e os Séculos

Restaurando um quadro que emoldurei há anos, com um poema de Adalberto Monteiro chamado “A meu Partido”, precisei consultar o livro dele, “Os Sonhos e os Séculos” onde fora publicado em 1991. Precisei recuperar algumas palavras esmaecidas pelo tempo. Tenho o livro, com dedicatória e tudo desde essa época, e nunca tinha prestado atenção que sua capa é uma foto da Terra vista da Lua. Uma foto fantástica e que muito recentemente encontrei em pesquisas pelos meus devaneios lunares. Fiquei fascinada com as imagens que encontrei no site da Nasa e, sabendo que foram tiradas em solo lunar, me causou estranha sensação de ser expectador de mim, de saber-me lá. E nesta visão distante, tão distante assim, nosso gigantesco planeta precisaria ser aumentado em vários zooms, sistematicamente, até que pudesse ver-me aqui escrevendo este texto. E porque sonhar é coisa para poetas e loucos é que lá da Lua me vejo aqui na Terra sonhando com a Lua e aqui da Terra, me vejo lá na Lua sonhando com a Terra. Demorei 20 anos para obter conhecimento de tal vislumbre, roçar nuances de sentimentos poéticos, perceber que a ebulição desse sentir, também aconteceu para Adalberto quando publicava seu livro de poemas, lá em Goiás em 1991. E, decerto, sonhando com a Lua, escolheu exatamente esta imagem. Essa é uma prova de que os sonhos percorrem, de fato, os séculos.


Foto: A Terra vista da Lua. Capa de "Os sonhos e os séculos" de Adalberto Monteiro. No Prefácio de Brasigois Felicio: "Aqui a poesia denuncia a vileza dos séculos da barbárie e proclama que, apesar de tudo, o sonho da paixão e da revolução está vivo." 

10 de mar. de 2010

fragmentos do blog do André

"Eu cuido de minha solidão assim, construindo diariamente pontes da minha ilha para o continente, registrando a conversa entre meu coração e o meu pensamento, revelando o meu desejo de ser o que ainda não fui. Não sei se almas têm tamanho, mas ando sentindo a minha crescendo."  (do Blog do André)

5 de mar. de 2010

Caillou não foi na festa

o que sobrou da festa...

Uma lembrança procurou o Rogério



Uma lembrança pulou as grades do parque, na parte mais sombria, onde as copas das árvores transbordam folhas densamente verde-musgo. Abaixo desta absurda massa verde, uma grama tenra, em tom mais claro, se estende infinitamente plana, plena e suave. Minha lembrança percorre velozmente esta planície e esbarra em cada tronco, descascados alguns, em busca dele. Perdida nessa imensidão de plantas frescas, minha lembrança não sabe em qual tronco ele estará, sentado abraçando as pernas, pensativo. Lê algum livro, e repousa a cabeça sobre os joelhos. Costas cansadas, doridas de noites mal dormidas, não sei, imagino de todo revolucionário. Pensativo está, com certeza. Busca a sombra, a paz do silêncio, a concentração, a solução para seus enclaves.

Mas ali fica. Ali ficou, naquele dia de primavera, e na noite, e ainda está lá. A lembrança escarafuncha, então, cada palmo verde do bosque, em busca de amenizar a impressionante sensação de abandono, de desassossego, de mistério que permaneceu insolúvel. Não importa em qual árvore a vida dele se estancou. Em algum canto por ali, ela [a vida dele], percorre entre o cheiro de mato e a noite, entre a madrugada molhada de orvalhos e o repouso dos suspiros e pensamentos, suspensos na névoa do lago, na bruma. Posso sentir, minha lembrança não esquece sua luta, seu motivo de viver. Minha lembrança imagina seu rosto, sua dor fulminante no peito, mas não chega nem perto do que de fato ele sentiu. Se incomoda, não pôde ser solidária. A morte é solitária. 

Minha lembrança vai perambular por ali, no verde desconhecido, no orvalho do sombrio bosque. Vai fazer-lhe companhia sempre que, como hoje, pular as grades do parque. (Ada, 5/3/13)

***


"Em 21 de outubro de 1992 Rogério Lustosa faleceu subitamente de infarto, num dia ensolarado, no parque do Ibirapuera, em São Paulo. Sua morte causou grande consternação no Partido [Partido Comunista do Brasil] e em todos os lutadores pela causa da liberdade e do socialismo. Rogério tinha apenas 49 anos e foi fulminado por um ataque cardíaco que interrompeu, bruscamente, uma vida integralmente dedicada à revolução. Membro do Comitê Central [do PCdoB] e do Secretariado, era responsável pela Agitação e Propaganda do Partido." (Olivia Rangel).

3 de mar. de 2010

Meu olho que pensa que tudo viu


Meu olho se estica entre os prédios e dá a volta em todos os vãos intrincados de concreto e musgo. Penetra em cada janela, especulando seus moradores em paredes sem cor. Nas antenas lá do topo, emaranhadas com fios de pipas, meus olhos se enroscam e rechaçam as pixações sem nexo e plainam de volta às copas das minguadas árvores. Um par de tênis surrado balança pelo cadarço nos fio de eletricidade, jogado há dias por um moleque na saída da escola. Ele divide o espaço com os pombos cinzentos e magros que, malabaristas, esperam migalhas escassas na porta da padaria. Meu olho se alonga mais adiante e arde com o congestionamento das ruas vizinhas, na fumaça dos cigarros, na fuligem dispersa. Se apressa e conta quanta gente se aperta no ônibus e, feito gato no escuro, reflete a luz da retina, embaixo, no túnel do metro. Tranquilamente, meu olho fotografa as vestes coloridas, os guarda-chuvas molhados, os cabelos esvoaçantes de transeuntes alvoroçados e lê cada placa de rua, de todas as ruas, com seus nomes desconhecidos. Segue atentamente os cães sem dono, de olhar pidonho, e lacrimeja compaixão. Aperta-se para ver o sol e enruga-se sobre os escombros do Haiti e do Chile, de tão longe que meu olho vai. Enquanto espero o farol abrir, meu olho que pensa que tudo viu, nestes poucos minutos dá graças à minha imaginação por ver tanto assim. (Ada 3/3/2010).

2 de mar. de 2010

Meus pensamentos fervilham

(Galáxia Espiral M74 na Constelação de Peixes)











O Universo fervilha seu movimento
Impossível imaginar tanto acontecimento 
Cada molécula se manifesta
quantos nascem, quantos morrem
neste momento?

Sigo perdida nos pensamentos
suspensa num sibilar de vento
que a música imita 
em algum instrumento
exalada via satélite até o meu rádio.

(Ada, 2/3/10)